Sobre a Justiça os clichês costumam ser mais abundantes que as estatísticas. Para tentar mudar esse quadro, o defensor público Daniel Nicory, 32, mestre em direito pela Ufba, passou os últimos três anos estudando o que acontece na prática desde o momento em que uma pessoa é presa em flagrante em Salvador até a decisão final do juiz. Os resultados que encontrou, ao lado dos pesquisadores da Escola Superior da Defensoria Pública da Bahia (Esdep), transformaram-se no I Anuário Soteropolitano da Prática Penal, lançado no final do mês passado. As conclusões não foram muito animadoras, especialmente para mulheres vítimas de violência doméstica. Entre 2011 e 2014, nenhum dos agressores pesquisados foi condenado. O anuário também mostra que apenas 52% dos presos por tráfico são condenados pela Justiça – os demais foram considerados usuários ou absolvidos de qualquer acusação.

A pesquisa mostra que 40% dos presos em flagrante em Salvador são inocentados na Justiça. Esse número reflete o que acontece em outros estados ou há aqui um desencontro considerável entre a ação policial e a jurídica?

Quando se fala em flagrante, há aquela ideia de o sujeito ter sido pego com a boca na botija. É um ato que parece criminoso, em que o sujeito parece ser o autor, mas, nem tudo que parece é. Por isso, acaba havendo esse percentual grande de absolvições, ou porque a prisão foi equivocada ou porque a Justiça não teve provas suficientes para a condenação. O único dado que eu conheço que faça essa relação, aqui no Brasil, é o de um estudo sobre tráfico de drogas em São Paulo. Lá, dos presos em flagrante, 91% foram condenados. Aqui, o índice é de 52%. Na minha opinião, não é o nosso número que está abaixo do que deveria, o de São Paulo é que é alto. A lei brasileira sobre tráfico é muito vaga para distinguir usuário de traficante. Aí a polícia segue a orientação de prender e, depois, a Justiça pode reconhecer que aquele sujeito era usuário, ou nem isso.

O estudo também mostra como a Justiça é mais eficiente quando se trata de crimes contra o patrimônio (furtos, por exemplo) do que contra a pessoa (agressões domésticas). Isso acontece pelo modo como o sistema se estrutura?

Acredito que sim. Tanto que, depois da divulgação da pesquisa, o Tribunal de Justiça anunciou a criação de duas novas varas [de Violência Doméstica]. Não deixa de ser um reconhecimento de que estava subdimensionado. A maioria dos processos das varas de Violência Doméstica que nós estudamos ainda estavam no início, o que pode indicar falta de pessoal para cumprir os autos. No caso da violência doméstica, há uma explicação lógica aí. A Lei Maria da Penha é relativamente recente.

Durante o período analisado, nenhum agressor foi condenado por violência doméstica. O dado foi contestado pela juíza Márcia Lisboa, que alegou que o estudo desconsiderou as medidas protetivas emitidas pelo órgão e sentenças condenatórias expedidas em 2014 (teriam sido dez sentenças) e em 2013 (quatro). Como o senhor responde a isso?

Esses dados não contradizem o estudo por um motivo: os casos que analisamos começaram em 2011 e foram acompanhados até 2014. Quando a juíza deu esse número em resposta – e são poucas sentenças – podem ser processos mais antigos ou mais recentes. Até 2014, não houve condenação desses flagrantes iniciados em 2011. O que tem que ficar claro é que o estudo em momento nenhum teve o objetivo de imputar culpa a ninguém. Quisemos mostrar um quadro.

E o quadro é muito desanimador…

O que eu reforço é que as mulheres devem continuar denunciando. O pronto atendimento que ela vai receber é o da delegacia da mulher, que já existe há mais tempo, então quero crer que esteja mais estruturada. A Defensoria assinou recentemente um termo de cooperação para a Ronda Maria da Penha, então não é só a Justiça que dá esse atendimento. Tem a polícia, a Defensoria Pública, o Ministério Público…

A maioria dos presos por tráfico de drogas na Bahia são jovens, portavam pequenas quantidades de um único entorpecente (60,45%) e estavam desarmados (83,76%). Muitos acabam sendo inocentados. Por que esse ciclo persiste?

Num sentido mais amplo, acredito que a gente precisa rever a nossa política de drogas. Essa é a providência mais importante. Mas mesmo que a gente admita que a política de drogas deva continuar como está, a gente tem que fazer algumas reformas na legislação, para ela ser mais justa. Hoje o artigo que trata do tráfico é muito abrangente, tem uma pena muito alta e nem sequer exige que o sujeito tenha um intuito de comércio daquela droga. A redação dele é praticamente igual à redação do porte de drogas para uso. A mesma lei, em outra passagem, prevê vários critérios que o juiz tem que usar para discernir o tráfico do uso. A questão é que, quando nossos juízes aplicam esses critérios, o sujeito já ficou um bom tempo preso. A mudança da lei seria interessante para orientar a atuação policial, que está na linha de frente, com pouco tempo para refletir sobre a abordagem. Penso que seria importante haver um limite de quantidade abaixo do qual o sujeito possa ser considerado somente usuário. É um ponto controverso. O contra-argumento clássico é: «Ah, mas aí o traficante só vai andar com essa quantidade menor». Tem duas respostas a essa objeção: primeiro, não existe varejo sem atacado. Num primeiro momento, esse limite de quantidade serviria para direcionar as atenções da polícia para os casos maiores. O segundo ponto é que o limite de quantidade refere-se aos comportamentos do usuário: adquirir, guardar, transportar. Se o sujeito é flagrado vendendo a droga, aí não importa a quantidade.

Você falava da necessidade de o Brasil repensar sua política de drogas. Que mudanças você defende?

A política de drogas hoje é o típico remédio que faz mais mal do que a doença. Não tenho dúvidas de que o abuso de drogas é um problema sério, mas a estratégia que o mundo utilizou para combater esse abuso, que é a proibição, causa ainda mais estragos. Você poderia ter vários níveis de controle, conforme a droga e a finalidade de uso. Um bom exemplo da discussão que está em andamento é o da maconha medicinal. O Brasil deu um passo tímido este ano, que foi liberar o canabidiol. Se você pensar bem, ele já estava permitido por todas as convenções internacionais que liberam o consumo terapêutico da droga, se tiver comprovada a utilidade. Sendo bem honesto, as convenções pensaram na morfina, nos derivados do ópio, mas se aplicam à maconha também. Aí cinquenta e tantos anos depois, a gente libera o canabidiol, que não é nem liberar a maconha medicinal, é menos que isso.

Com o atual Congresso, você tem esperanças de que esse debate avance?

Existem alguns parlamentares já convencidos disso. É uma discussão que tem muita resistência moral, muito tabu, mas, quando você conversa sobre ela sem qualquer paixão, mostrando que a proibição total é tão estúpida quanto a liberação total, é possível estabelecer um diálogo. O que a gente quer é um meio-termo mais racional. Vamos ser francos, sempre que há demanda, há oferta. Isso significa que a gente deva liberar todos os mercados ilegais? Não. Há mercados ilegais que devem ser proibidos sempre, como o tráfico de pessoas, de órgãos. Mas outros, sempre que você tiver uma alternativa ética, o mais racional é regular, e não proibir, porque aí você consegue criar uma estrutura para fazer esse produto chegar ao consumidor. Quanto mais forte a repressão, mais forte é a reação de quem está na ilegalidade.

Você acredita que nesse sentido a Justiça venha, na prática, avançando mais nessa área do que o Legislativo, da mesma forma como ocorreu com os direitos civis para a população LGBT?

A gente tem uma decisão importante do Supremo [Tribunal Federal] sobre a [liberação da] marcha da maconha, e outras decisões sobre o direito que o pequeno traficante tem de receber pena alternativa. A conclusão foi que deixá-lo na cadeia é treiná-lo ainda mais no mesmo exército. Mas isso não conseguiu conter o crescimento do número de presos. Os presos por tráfico representam 25% da população carcerária no Brasil. Há sete, oito anos, eram 12%. Há outra questão em pauta no STF que diz respeito ao porte de drogas para uso. A Defensoria de São Paulo entrou com recurso para discutir o seguinte: não posso punir o porte para uso, porque aí vou punir a autolesão. As supremas cortes da Argentina e da Colômbia já decidiram assim. Seria um avanço [a decisão no Brasil], mas pouco prático se não for acompanhado da mudança da lei.

Há pesquisas que indiquem recortes de cor e renda interferindo nas decisões que separam usuários de traficantes?

Não conheço, mas tenho uma certa indicação disso pelo tipo de droga apreendida. As condenações por posse de crack são maiores que as por posse de maconha e cocaína. Em tese, é possível esperar esse resultado, porque o crack é mais lesivo, mas o que não se justifica é que a cocaína tenha um tratamento mais brando.

O estudo também mostra que há uma adoção considerável das penas alternativas. Na Vara de Tóxicos, chega a 51,59% dos casos. A população ainda tende a ver essas penas como se o réu não estivesse «pagando» de fato pelo que fez. Como o senhor costuma responder a isso?
A pena alternativa não é para todos os crimes. O erro é querer que a prisão seja para todos. Sempre gosto de fazer uma analogia com o Big Brother. O sujeito passa 90 dias num reality show com direito a duas festas por semana, podendo ganhar uma fortuna na saída, e ainda assim é tratado como herói do confinamento. Isso mostra como confinamento não é mole. Não defendo a impunidade, mas a proporcionalidade. É proporcional você manter um sujeito que foi pego com dois gramas ou cinco gramas de crack na cadeia por cinco anos? Ou é mais racional dar para esse sujeito uma pena de prestação de serviços à comunidade? Talvez numa clínica de reabilitação… O que é mais útil para a sociedade? É muito caro manter uma pessoa presa, para um resultado péssimo.

 

http://atarde.uol.com.br/muito/noticias/1669617-precisamos-rever-a-nossa-politica-contra-as-drogas